Publica-se, para leitura pública, mais uma produção literária do poeta e escritor uruçuiense, Artur Pires. Desta vez, um texto em prosa que apresenta, além de um excelente enredo, uma linguagem que permite uma boa leitura.
O texto, “DESENGANADO”, é mais uma mostra da capacidade literária desse poeta e escritor que faleceu há 33 anos, deixando uma vasta produção artística.
DESENGANADO
__Que me diz? O Raimundo?
__O Raimundo?
__Desenganado.
__Desenganado;
__E por qual médico?
__Pelo Malta…
__Coitado! Está ali, está no Caju. O Malta só se engana quando desengana, mas que tem ele?…
__Sei lá! Fraqueza pulmonar, congestão da espinha, neurose cardíaca, hepatite por simpatia…O diabo! O Raimundo tem o diabo!
__Pobre diabo, quero dizer? Pobre Raimundo! Há dois meses que não o vejo, a última vez parecia vender saúde.., gordo, forte, bem disposto…
__É vermelho; vermelho como um camarão torrado. Pois hoje se o vires, não o reconhece…Está na espi…olha! Ali vem ele…Falei no…
__Qual?! Aquele que tem um cachenê cor de havana?
__Sim.
__Safa! Já traz cara de defunto. Não o conheci. E adiantaram-se ao encontro do pobre homem.
__Então que é isto, Sr. Raimundo? Biscoitos para a viagem…respondeu-lhe o enfermo, apertando-lhe tristemente a mão.
__Qual biscoito! Homem,__volveu-lhe o Roberto. Está com uma cara de pachola! Coragem! Já o estou achando melhor, tem até uma boa feição. Não achas, Duarte?
__Pois, não! Uma feição magnífica; corroborou Duarte, que ainda há pouco lhe achava cara de defunto.
__Bondade, meus amigos. A sua estima é que lhes faz parecer isso. Estou morto.
__Deixe-me disso, seu maricas. Há de morrer de velho. Vamos beber ali no Gaspar, um copito da afamada “gemada”. Ande daí.
__Obrigado, Roberto. É a hora da minha pílula.
__Mande ao diabo as pílulas…
__Mande ao diabo as pílulas…
__Mas o Dr. Malta…
__Mande-o fazer companhia às pílulas…Você precisa é da boa pinga, do bom caldo de grelha, da geleia de mocotó.
__Sempre engraçado, sempre bondoso, Roberto…Mas com licença, vou ali ao Ubiratan ver o meu emplastro de jurubeba,,,
E o pobre Roberto estendia a mão trêmula, tão triste, tão desanimado, que parecia ir, na verdade, tomar o Bondinho do Outro Mundo.
Mas Roberto não o largava. Ia levando aos poucos, ao Gaspar, esclarecendo a excelência de um célebre “três-cachos!” Que ele tinha lá: “uma pinga que dá vida aos mortos, seu Raimundo. Que se deixasse de cataplasmas e pílulas! Ele comia? Tinha ele apetite?
__Lá muito, muito, isso tenho. Mas sempre roo a minha asinha de frango. O doutor mandou que me alimentasse pouco…Cousas de espírito…
__Histórias, homem! Se tem apetite, é comer-lhe! Coma-lhe e beba-lhe do bom e do melhor! E sono? Dorme bem?
__Durmo bem, durmo. Até desconfio que é da moléstia tanto sono que tenho, vou perguntar ao doutor.
__Acho melhor que você consulte o cozinheiro do “globo”. Vamos aos “três cachos” e mande à fava a medicina…Venha d’aí…
Nos olhos amarelentos do desenganado fulgiu a chispa consoladora de um bom jantar, borrifado de alguns cálices do fino. Despregou-se lhe a boca, arrepanhada no travar das tisanas em um ligeiro sorriso de apetite…E foi com os dois amigos à tal pinga famosa, esquecendo completamente as pílulas no bolso, dentro da sua boceta de papelão amarelo.
Meia hora depois, o Duarte e o Roberto ajudavam o Raimundo a subir ao seu bonde da rua da Alegria(da Alegria!) e o Raimundo refletia-lhe, pela centésima vez.
__Daquele é que você precisa. Mande ir uma caixa. É a minha botica—o armazém do Gaspar. Experimente, experimente e verá…
Quando o carro corria pela Rua Erotides Lima, apinhando de passageiros, o pobre Raimundo bateu de repente na testa, murmurando muito enfiado:
__Ah, não! Me esqueci do emplasto.
Verdade, verdade, tinha de que assustar-se o Raimundo. Aquilo lá por dentro não ia muito bem…
Havia meses que ia a olhos vistos: fugiam-lhe as cores, doía-lhe o corpo. Era uma alfinetada traiçoeira entre as costelas, ora uma zoada nos ouvidos, uma fraqueza, um amolecimento…E frios, tristezas, tosse, palpitações…
Mas ele nada! Que aquilo eram humores…E demais, andava tão carregada a atmosfera…E acirrava-se, para espairecer, na sua faina comercial. Ia fora, a bordo dos navios que vinham do Sul, ver os carregamentos, escolher a carne seca, saber dos preços, das novidades da praça.
Que não o tirassem da sua rotina…que então é que ele adoecia deveras. Mas o pior é que ele não ia melhor. Cansava, tinha pesadelos, digeria muito mal; sentia afrontação, e costumava dizer, comprimido com a mão espalmada no hipocôndrio esquerdo:
__É o fígado, é o demônio do fígado.
__Dizia que tinha medo da medicina e dos médicos; eles que matam a gente…Nada, nada de relaxar o estômago com xaropadas.
Íntimos dele, porém, afirmavam que não era da medicina que o Raimundo se receava, mas das contas dos médicos e das boticas…
Sim, o Raimundo não era propriamente aquilo que se pode chamar um pródigo.
Os sapatos, só os despedia dos pés de bem convencido que não havia mais tombos, nem remontes que lhes valessem. E aguardava-se cuidadoso de falar em casa do que se dizia lá por baixo da nova tropa do Ferira(ela chamava-lhe tropa, à trouxe) receoso de que o prurido da boa música tirasse pela família para um camarote no Pedro II.
Nem Shylock nem…poupadinho. Poupadinho é o que ele dizia ser.
Mas, afinal, meteu-se naquilo o compadre Malta, a pedido da própria família do Sr. Raimundo, e resolveu-o-Deus sabe com que trabalho!—a ir saber do Dr. Malta que diabo tinha ele…
Desta vez, porém, nada disso. Raimundo subiu vagarosamente aqueles degraus gastos e enodados, e teve de sentir a frialdade visguenta e repulsiva do corrimão.
Também não foi ele quem, dessa vez, perguntou ao tal sujeito, sentado de encosto à porta do gabinete de consultar, aguardando ferozmente a sua vez.
__O doutor está?
Ele deixou-se cair no sofá lugubremente e com tão pesado desânimo, que quase se sentou no colo de uma gentil doente do famoso clínico.
Um velhusco cor-de-cidra, de barbicha, que de minuto a minuto quase estourava, sufocado por arrancos de tosse asmática, penetrou o pobre Raimundo de um longo olhar compassivo, não isento de alguma alegria, um olhar que dizia claramente ao recém-chegado: “Eu estou ruim, mas tu estás pior”.
Só então é que o Raimundo reparou que como era triste, acabrunhante, estúpida, aquela espera na antessala de um médico.
Só então sentiu no ar aquele cheiro maléfico, envenenante, exalado por um demorado ajuntamento de muitas e diversas enfermidades.
Só então viu senhoras chorando a um canto, em silêncio, tendo ao colo crianças pálidas, magrinhas, sem movimentos-umas madornando, outras olhando tristemente as coisas com grandes olhos nevoentos, cheios de despedidas. Só então notou que ninguém falava. Um ou outro indivíduo lia uma folha amarrotada, erguendo a vista de momento a momento para o reposteiro fatídico…
Aquilo tinha um aspecto de antessala de tribunal, em que indigitados e testemunhas esperavam ser introduzidas à presença de um juiz severo.
Uma hora naquele recinto deixava no espírito uma impressão, por toda a vida, indelével.
De dentro do consultório vinham ter aos ouvidos de Raimundo farrapos técnicos, sinistramente inteligíveis…”Quando lhe oferta a tosse?” “Dói-lhe aqui”? “Muito, seu doutor, dói-me muito”. “É um nefrite parenquimatosa bem caracterizada”. “Vascoleje o vidro sempre que for tomar”. “O seu estado é muito grave…” E, como estas, muitas outras coisas, aos bocados, mal distintas, mas às quais todos os que ali estavam prestavam involuntariamente ouvindo.
De quando em quando, saia do gabinete um cliente que era logo substituído por outro.
Nada, porém, mais triste, nem mais assustador, do que essa tecnologia profissional, que debaixo de mil diferentes termos inteligíveis, oculta sempre a mesma cousa terrível e próxima, que todos, sem o confessarem, compreendem perfeitamente.
Todas essas circunstâncias molestavam e pungiam tanto o pobre Raimundo, que, quando ele entrou no gabinete, estava mais morto do que vivo.
O exame foi longo, minucioso, martirizante.
O Dr. Malta havia chamado para o cálculo dos exames e auscultações um ilustre colega, que estava no gabinete a ler preguiçosamente em uma brochura, e enquanto o pobre diabo se conservava deitado de papo para o ar e pernas escolhidas, despertado, meio despido, os dois médicos discutiam pachorrentamente o interessantíssimo caso.
Trocaram entre si frases barbarescas, muito científicas, olhares de inteligência, sorrisos satisfeitos, apoiando de vez enquanto os argumentos sobre o ventre, o estômago magro, e mais órgãos do infeliz Raimundo.
__Veja o colega como está isto congesto; e agora repare, apalpe aqui. Não acha um pouco de demasia? A diurese deve ser má. Talvez haja depósito de albumina…Demanda um exame demorado.
__A fisionomia muito depauperada; dizia o outro. Conjuntivos pálidos, glândulas numerosas, ingurgitadas, dispneia, palpitações…talvez uma esclerose incipiente…porque, segundo explica Vulpian…
O Raimundo nada entendia de tudo aquilo, mas desconfiou logo de tanto falatório, de tanto latim.
Demais, o compadre Malta, que se havia deixado ficar um momento a sós, em companhia dos ilustres clínicos, não lhe pareceu muito satisfatório…
O Dr. Malta, além de muitas pílulas, emplastros, xaropes, receitou-lhe com grande insistência, como poderoso auxiliador da cura, uma viagem à Europa, “Que fosse ao sul da Itália, a Portugal mesmo, mas que fosse, que não deixasse de ir à Europa”.
Andava o Raimundo exatamente a ruminar essa maldita viagem e a preparar-se para ela, quando teve aquele encontro com o comendador Roberto e o Duarte; encontro de que resultou ir o desenganado provar dos “três cachos” e a alguns sólidos do armazém do Gaspar.
Que influência exerce o desenganado, essa visita, não o sei eu.
Que lhes posso, contudo, afirmar é que o Raimundo, em vez de ir à Europa, ia todos os dias para a Rua Direita, à supra dita farmácia, de que se tornou um freguês magnífico, um dos maiores consumidores.
Quatro ou cinco meses depois da sua fatal consulta, encontrou-se com Raimundo na rua com o Dr. Malta. Esbarraram-se em um esquina:
__Ô Doutor!
__É o Sr. Raimundo! Bravos! Que bela aparência! Agora, sim; tem saúde para dar e vender. Quando voltou?
__Quando voltou?
__Sim, quando veio da Europa?
__Eu não fui à Europa, doutor.
__Não foi? É impossível. Mas estão onde ganhou essas cores, essa gordura?
__O Sr. Doutor me perdoa que lhe diga a verdade?
__Não só perdoo, como exijo que o faça…
__Pois então lá vai. Em vez de ir para a Europa, como eu sabia que estava desenganado, tratei de aproveitar o restinho da vida e atirei-me a comer e a beber regularmente do bom e do melhor, sem dó da bolsa…Felizmente!
__Ficou bom. Pois o felicito e cá registro mais esta! Disse-lhe em despedida o Dr. Malta, um pouco enfiado com a brincadeira.
Era a primeira vez que lhe acontecia haver-se enganado-desenganando um doente.
Artur Pires
Escritor uruçuiense