A zona rural de Uruçuí já foi palco de um episódio banhado com requintes de crueldade. Existia, no seio do povoado Malícia, uma mulher que encantava a todos com sua expressão de rara beleza e simplicidade. A sua formosura era tão intensa que, mesmo metida na rusticidade dos afazeres do campo, não se notava em seu pranto, rastro de feiura feminina. Somava-se ao seu estereótipo a facilidade em construir amizades.
Certo dia, num baile interiorano em torno de uma fogueira, afeiçoou-se de um rapaz moreno escuro, imberbe, cabelos por cuidar e uma desenvoltura ao falar. Depois de sequências de trocas de olhares, resolveram conversar. Ela, sob o olhar firme de seus pais, mostrava-se muito tímida. A jovem já tinha 18 anos de idade e um corpo muito elegante. Do diálogo nasceu um namoro que teve como desfecho, meses depois, a união matrimonial.
A rotina da vida a dois era vivida numa casa muito rústica e não fugia à regra da vida rural. Serviços de casa e serviços da roça. E assim a vida do casal foi tentando construir raízes. Mas, uma década depois, o esposo de Alice Almeida entrou numa intensa crise de ciúmes. Ele, mesmo metidos num paiol de incertezas, já não sabia se ia para a lida no roçado ou ficava em casa botando tocaia para dirimir suas dúvidas. Às vezes, com os pensamentos voltados para a fase inicial das relações, pensava em tomá-la nos braços e beijá-la como se tudo estivesse começando. Também, ele foi visto em conversas solitárias onde traçava um desfecho macabro para aquela situação. Para um punhado de vizinhos, tudo não passava de “ciúmes bestiais”.
Num determinado dia, depois de um histórico de espancamentos, o esposo de Alice a convidou para, como de costume, irem a uma caçada nas veredas de agreste da região. E como ela nada confirmou, ele bradou:
¬ _Tu tá é surda, Alice?
__Não. Cabisbaixa, ela resmungou.
Aquela era uma linda manhã de inverno. O sol já beijava as primeiras árvores retorcidas do cerrado e os pássaros cantarolavam metidos num estado de contentamento. Pareciam encantados com os encantos que pranteavam naquele corpo feminino.
Para sair, chamaram os cachorros caçadores, pegaram a ferramenta necessária e uma cabaça com água de cacimba. Alice foi ao seu quarto de dormida, agasalhou sua roupa dentro de uma mala de couro, fez o sinal da cruz em frente a uma pequena imagem de N.S. das Dores, olhou o entorno da casa e, aparentemente jururu, partiu para a lida. Ainda durante a caminha rumo ao ponto ideal, Alice, indo à frente, foi surpreendida por uma forte pancada desferida pelo esposo em sua região lombar. Ela caiu com os lábios na terra e parte de seu corpo sobre uma moita de tucum rasteiro. Caiu deixando soar uma sequencia de gritos estridentes de dores. E mesmo jogada ao chão o agressor a chutava sem piedade e soltava palavrões do tipo: “Você não presta”, “não merece ser minha muié”, “sua vagabunda”, “é uma traidora”, “tu e aquele sujeito se merecem”, “hoje tu me paga”, “depois será a vez dele”.
Enquanto isso, Alice sangrava em várias regiões de seu corpo, principalmente nariz e boca onde recebeu vários chutes. E ainda mais irado, ele avançou sobre a esposa e a segurou em suas longas madeixas. Segurou firme e a arrastou sobre o capim agreste, moitas diversas, pedras e tocos. Arrastou que arrastou. Enquanto isso ela clamava por todas as ajudas possíveis. Por onde o corpo de Alice era arrastado ia ficando um rastro de sangue, carnes e cabelos. O esposo, agora monstro, estava totalmente transtornado e transfigurado..
Depois de saciar sua sede assassina e percebendo que sua esposa estava desfalecida, ele procurou um buraco para esconder o corpo da “amada”. Depois de muito andar, encontrou uma moradia de peba verdadeiro. Ali depositou o que restou do corpo de Alice Almeida. Uma parte ficou do lado de fora. Após o ato de selvageria, ele se dirigiu para o casebre onde residia, pegou alguns pertences e depois saiu numa fuga sem destino certo. O corpo de Alice Almeida só foi encontrado dias depois quando já estava sendo devorado pelos urubus.
O assassino nunca foi encontrado. Dizem as boas memórias que ele tinha o poder de se tornar invisível. Quando a polícia encontrava fortes indícios de seu paradeiro, ele sempre conseguia se safar.
Muito tempo depois, no povoado Maliça, foi construída uma capela onde foram sepultados os restos de Alice. Muitas pessoas relatam que em momentos difíceis tiveram suas preces atendias por intercessão de Alice Almeida.
Anchieta Santana