Era fevereiro de 1948. O lugarejo denominado Barra da Prata estava em vésperas de uma grande festa religiosa. Há meses a comunidade engordava galinhas e porcos, pilava arroz e cortava a melhor lenha para preparar a alimentação para comunidade durante aquela tão esperada “desobriga”. Esta, só acontecia de dois em dois anos, em mês incerto. Naquele ano, o sacerdote encarregado das celebrações era o padre Manoel Alves de Carvalho(Padre Pequeno). O codinome, Padre Pequeno, era uma referência apenas a sua estatura física. Pois, no trabalho espiritual era tido como um gigante. A comitiva do padre era obrigada a se deslocar dezenas de quilômetros em lombo de mulas, sob sol ardente ou chuva, conforme a época e a sorte. Também fazia parte do conjunto de dificuldades, o cansaço, o perigo de ser surpreendido por animais selvagens, a baixa densidade demográfica e os caminhos tortuosos e precários. Dependendo da localidade a ser visitada, a viagem durava semanas.
Quando amanheceu o tão esperado dia, logo pela manhã, as senhoras encarregadas pela recepção do pároco cuidaram de organizar o espaço onde aconteceria a celebração. Uma mesa posta no final de uma sala de formato irregular e com ausência de revestimento estava enfeitada com a melhor toalha, velas e ramos diversos, palhas de palmeiras e flores de juá e outras plantas. Pendurados numa escapa lateral estavam alguns arreios amarelados pelo uso rotineiro, perneiras, uma cabaça usada para levar água para o campo, dois cabrestos, um par de esporas e um jogo de cordas de laçar.
Às seis horas de uma manhã nublada, a comunidade, a pé ou a cavalo, começava a chegar de todos os ribeirões. As famílias do Silva da Filomena e do José Monteiro já estavam acampadas ali há dois dias. Após um rápido banho no riacho mais próximo, os fiéis se reuniram numa rancharia previamente preparada. Era hora de tirar os “pandeiros” de fritos dos alforjes e preparar o café matinal. Ali mesmo acontecia o primeiro momento de integração comunitária e o consequente fortalecimento da amizade.
Às oito horas, as pessoas já estavam devidamente sentadas nos grandes bancos e tamboretes de talo de buriti ou madeira. Quem ia ser batizado e/ou casar já estavam prontos. Não se ouvia nenhum grito da meninada. E o padre, ainda dentro de um quarto individual, já estava terminando de se trajar com a sua batina branca e surrada pelo uso. E ali aguardava um sinal dado pelo Sacristão. Este, vendo que tudo estava bem organizado, foi à porta e, compassadamente, bateu duas vezes. O sacerdote entendeu a mensagem e com seus passos curtos e lentos se dirigiu ao altar improvisado. Improvisado mas bem ornado. O que importa é a fé, dizia alguns.
Ao se encontrar em seu posto, o padre olhou a pequena, mas fiel comunidade e começou a sua longa e instrutiva celebração, que incluía batizados, casamentos e um extenso sermão. O sacerdote trazia em sua pequena comitiva, um fotógrafo. E recomendava que todos tirassem fotografias para registrar aquele momento. A orientação do pároco, aos ouvidos dos devotados, soava como algo imperativo. E o cura dizia mais, como irão mostrar esta festa da palavra de Deus aos descendentes de vocês? Quem não tinha dinheiro, pagava com galinha, tapioca, feijão ou assemelhado. As fotografias só eram entregues na próxima desobriga ou quando alguém da comunidade ia fazer compras na zona urbana.
Naquele dia, logo após a celebração litúrgica, Aureliano Saraiva, um antigo morador da região, depois de muito rodeio, ganhou coragem e aproximou-se do padre e, sendo conhecedor da fama do sacerdote, lamentou num quase pedido de ajuda:
—-Seu Padre, com a sua licença, hoje vim batizar minhas três crianças, mas também queria contar minha situação de vaqueirice. Já não sei o que fazer! Desde o início do ano passado tem uma onça-pintada comendo o meu gado. Três bezerros, dos melhores, e duas vacas já foram devorados pela fera. O rebanho já é tão pequeno. E dizendo isso, baixou o rosto esforçando-se para não chorar. O capoeiro trazia na face as marcas de uma tristeza que norteava um olhar jururu. Nos pés, alpercatas feitas de couro cru, mas, de certa forma, caprichadas.
O padre ouviu atentamente o relato do humilde vaqueiro, olhou em sua fisionomia de gestos tímidos e questionou:
—Filho, em que direção fica o pasto onde a onça está se alimentando de teus animais?
Aureliano Saraiva, com os olhos quase lacrimejando, apontou rumo ao nascente, dizendo:
—Fica naquela direção, padre. Logo após aquelas áreas de matas virgens.
O sacerdote pensou um pouco, olhou para a região apontada pelo vaqueiro e ficou a orar silenciosamente. Após alguns minutos, levantou a face e cortou o ar com o sinal da cruz. Depois disse ao vaqueiro:
—Fique tranquilo! Fique tranquilo! Nunca mais aquele animal vai subtrair gados de sua criação nem de outro criador.
No dia seguinte, o vaqueiro chegou em sua rústica propriedade e logo espalhou o que ouviu do padre. A comunidade que conhecia a fama do sacerdote, ficou bastante animada com a possibilidade de se livrar da onça.
Três dias depois, um caçador da região encontrou uma onça espetada numa arte de catuaba. Após análise sob a ótica da experiência popular, concluíram que a onça ao tentar pegar mais um bezerro, errou o pulo e foi varada por uma espécie de espeto de madeira. Morreu esvaindo-se em sangue. Uma situação que levou os moradores da região a comemorarem o desaparecimento da ameaça constante, mas, ao mesmo tempo, a ficarem com pena da forma trágica como a fera morreu. O velho Raimundo Preto chegou a tecer o seguinte comentário:
—Uma morte triste!
A partir desse dia, a região não registou mais nenhum problema com onças devorando animais.
Algum tempo depois, o padre ouvindo de Aureliano Saraiva o que tinha acontecido com a onça, apenas disse:
—Filho, Deus tomou conta dela!
Anchieta Santana
Uruçuí-PI