Ao longo de um século, na zona urbana de Urussuhy, muitos foram aqueles que, como o Zé da Malária e sua inseparável companheira, usaram as vias públicas para as mais diversas finalidades: “moradia”, vagar sem objetivos definidos, ambiente para dar vasão a conversas “sem nexo”, busca de alimentos e, até mesmo, satisfação de instintos sexuais. Mas, também, tinham aqueles que eram mais contidos e se limitavam a vagar apenas em torno de uma ou outra residência acolhedora.
Para discorrer sobre esses andarilhos urbanos, principia-se, buscando uma sequência história, falando de um jovem estudante que, em meados da década de trinta, por conta de uma “congestão alimentar”, passou a ter dificuldades para pronunciar as palavras corretamente e teve seu comportamento e destino mudados. E, por esse motivo, passou a sofrer discriminações sociais e uma vida um tanto recolhida. Apesar de ser jovem e com bastante vigor físico, não reagia ao ser provocado, principalmente pela meninada. Seu nome? Militão. Um jovem nascido na cidade de Balsas(MA). Segundo a obra “Zizinha e suas Reminiscências de um Uruçuí distante”, publicada por uma neta do saudoso Justino Leite de Oliveira, “Militão era um rapaz de 17 anos, branco, robusto, cabelos prestos e de boa aparência. Um belo rapaz que quando começava a falar, era assim: _ “ô,ô, ô, meu tio; ô,ô, ô, minha tia”. Sua voz era grossa e arrastada. Isso, era que assustava, quem não o conhecia ainda.” Quando era desapontado ou sofria preconceitos “(…)Chorava feito criança desconsolada”. Militão ficou certo tempo em Uruçuí, depois partiu para outra cidade, deixando saudades para aqueles que dele cuidaram.
A obra supramencionada, também faz referências a “Ursulino”. Este, um vaqueiro que cuidava de uma fazenda de gado do Rogério José de Carvalho. O vaqueiro era homem trabalhador e sempre prestava contas dos seus serviços. Mas certo dia, ele estava trabalhando “na queimada de sua roça”, sob sol escaldante, quando, de repente, caiu uma chuva intensa. Naquele momento, Urusulino “ficou transtornado e(…)depois, caiu tonto”. A partir daquele dia, por conta de um “choque térmico”, o vaqueiro teve sua vida totalmente transformada. Nunca mais “teve saúde”, nunca mais pode cuidar da fazenda. “O comportamento do Ursulino, passou a ser outro, ele andava sem rumo, pelas ruas de Uruçuí, cantando, na maioria das vezes, sem camisa, só de calça”. (…)“Quando cantava caminhando sem rumo, todos diziam que ele estava “atacado” e corriam fechando suas portas.” Mas, na realidade, ninguém nunca foi vítima de suas agressões. Ele não agredia. Apenas caminhava desnorteado entoando canções. Quando não estava “em crise”, Ursulino conseguia realizar algumas tarefas. E assim, o vaqueiro sofreu as consequências desse “choque térmico” e as discriminações sociais, até os últimos dia de sua vida.
Em Uruçuí, certa vez apareceu um andarilho que não sabia de onde vinha nem o destino. Apenas conversa consigo mesmo e se recolhia em algum lugar. Ele tinha uma altura mediana, um pouco magro, cabelos descuidados e barba crescida, suja e amarelada. O cabelo tinha cor ruiva acinzentada. Não gostava muito de conversar com as pessoas. Muitos uruçuienses, com receio, não queriam proximidade com ele. Ele passou um bom tempo na cidade, depois, misteriosamente, desapareceu. Foi caminhar em outros recantos. Seu nome? Félix Maribondo.
Lourenço, também muito palmilhou pelas ruas de Uruçuí. Vindo, possivelmente de Floriano, passou um tempo caminhando e conversando pelas ruas. Ele era moreno, um bom porte físico e não apresentava descuidos com cabelos e barba. Conversava consigo mesmo. Era uma conversa infinda e sem uma mensagem concreta. Conversa, gesticulava e sorria. Depois de algum tempo, sumiu. Destino ignorado.
Zé Bernaldino, o “Rei Novo”, também gostava de conservar com seus botões numa longa e paciente caminhada pelas ruas. Conversava e gesticulava. Sempre falava em números relacionados a riquezas, heranças. Era uma conversa solitária no mundo dos “milhões”, “trilhões”, “quatrilhões”…Era pacato e parte de seus familiares ainda residem em Uruçuí.
Quem também perambulou pelas ruas de Uruçuí, em busca de algo indefinido, foi o casal Zé da Malária e Severa. Ele, com um cabelo e barba sempre esperando cuidados, um olhar um tanto penoso e indefinido, vagava diariamente numa busca imprecisa e sem muita pressa. Depois de muito tempo dividido entre idas e vindas pelas estradas da região, certo dia ele convidou sua companheira e partiram para aquela que foi sua última caminhada. Ela, enrustida em sua timidez e fraqueza, faleceu nessa última jornada. Ele, também!
Maria Laura também passou a maior parte de sua vida dividida entre as ruas de Uruçuí e sua toca no sopé do Morro da Cruz. Ela caminhava pelas ruas como quem cumpria uma sina sem nome, sem definição. Tinha lá suas exigências, cuidava dos seus cães companheiros e andava sempre com pouco traje no corpo; em algumas vezes, apenas um saco usado cobria “suas vergonhas”, outras vezes, as “vergonhas ficam descobertas”. Era temida por algumas pessoas e não aceitava qualquer tipo de alimento. Tinha lá suas exigências. Findou seus dias de sofrimento em Uruçuí. Faleceu em estado deplorável.
Zé Ferreira ou Ferreirão, como ficou conhecido, depois de ter uma vida ativa de trabalho por longos anos, terminou por ser mais um andarilho palmilhando as vias públicas municipais. Ele tinha seus comportamentos e também suas crises. Tinha sua inteligência em alguns conteúdos e desconversava quando o assunto não era do seu interesse. Em seus últimos anos vida sempre buscava se encontrar em uma dose de bebida. Faleceu há sete anos, em 14 de abril.
Esses foram alguns andarilhos que palmilharam as ruas de Urussuhy ao longo de vários anos. Cada um com seu jeito, seu comportamento, seu rosto singular, seu sofrimento incontido, mas, num aspecto eles se juntaram: todos foram escolhidos para a vida de andarilho sem saber o que buscavam, nem onde. E ainda, as mulheres desse grupo citado, também se assemelham no quesito descendentes. Não tiveram a grata satisfação de ser genitora; ser mãe de nenhum rebento. Não experimentaram ouvir o choro do próprio filho e nem a voz de alguém chamando: ¬__Mamãe! Mamãe!
Anchieta Santana
Historiador e poeta