Num passado quase centenário, aconteceu um caso, em circunstâncias um tanto emblemáticas, envolvendo a vizinha cidade de Benedito Leite e Urussuhy. Um fato em que se vislumbra motivações substanciadas em nome da “honra”, da cultura doméstica e da brutalidade humana. A vítima foi um jovem de Benedito Leite nominado João Ferry.
Essa triste e dramática história da vida real é narrada, com riquezas de detalhes, na obra “Zizinha e suas Reminiscências de um Uruçuí distante”, de autoria de Lisbelina Maria de Araújo Costa Moura; e, também, por lúcidas memórias da nossa gente. A vítima residia em Benedito Leite mas tinha um bom trânsito junto à comunidade uruçuiense; principalmente, a juventude. Ele, conforme narrado na obra supracitada, era um “rapaz de dezessete anos, muito querido de todos, pacato, prestativo, sensato e respeitador”. “Nunca se teve uma notícia de mau comportamento seu”.
Numa certa noite de janeiro, João Ferry estava em sua casa e desejou saborear um pedaço de bolo caseiro. Convidou um amigo e, juntos, foram comprar o produto numa casa que ficava não muito distante dali. Era a residência de uma família que sempre tinha bolo para vender. Sua produção era famosa por ser bastante saborosa. Ao chegarem na residência, perceberam que as portas já estavam fechadas. Mas, naquela casa, tinha uma filha adotiva que, mesmo após o expediente, “para não perder o freguês(…) ou incomodar a mãe”, costumava vender os produtos através da janela de seu dormitório. Era algo rotineiro. E foi isto que aconteceu, mais uma vez, naquela noite. João Ferry e seu amigo compraram fatias de bolo, pagaram e foram embora.
Algum tempo depois, parentes da família, “pessoas ricas e influentes do lugar”, ficaram sabendo que João Ferry foi visto conversando com a moça da casa através da janela. Mesmo não se certificando do teor da conversa, e provavelmente em nome da honra da família, alguns “capangas” foram mobilizados para ensinar João Ferry a respeitar moça de família. O que aconteceu depois, foi terrível! Sem oportunidade para explicação e sem saber as motivações, João Ferry, ao ser localizado, coercitivamente foi conduzido a um local distante das residências. Ao chegarem num determinado ambiente, os brutos algozes começaram uma impiedosa sessão de espancamento. Espancavam, davam chupes e disparavam tiros para o alto na tentativa de evitar que populares se aproximassem e fossem tomar satisfações. Mas, mesmo assim, algumas pessoas conseguiram ouvir os lamentos e pedidos de socorro do rapaz. Enquanto durava a tortura, João Ferry, quando podia, perguntava: “Por que estão fazendo isso comigo?” E sob coronhadas e chutes, recebia como resposta: “Isso, é pra você respeitar mulher de família”. E João Ferry, aos prantos, dizia nunca ter feito aquilo. E sem ser ouvido, a tortura era cada vez mais acentuada. Até que num determinado momento, ao ouvir fogos de artifícios nas celebrações dos Festejos de São Sebastião, em Urussuhy, num último esforço, fez um apelo: “Valei-me meu São Sebastião!”
No momento do pedido dramático do rapaz, uma celebração estava em curso na igreja matriz de São Sebastião, em Urussuhy. Aquele era mais dia de janeiro sem nuvens anunciando chuva ou algo semelhante. Mas, de repente, teve início uma sessão de fortes e assustadoras trovoadas, raios e relâmpagos alcançando as duas cidades. Algo que deixou os algozes assustados ao ponto de largarem o rapaz e, às pressas, baterem em retirada. Em Uruçuí, no templo de São Sebastião, os fiéis, também, ficaram bastante assustados com a repentina e temerosa mudança do tempo e, com medo dos relâmpagos e trovões, saíram correndo igreja a fora quase em atropelos. Os fiéis não entendiam o por quê daquela situação temporal sem um prévio anúncio. Os relâmpagos e trovões pareciam estar quase à altura das pessoas. Era, de fato, bastante assustador.
Só algum tempo depois, a comunidade uruçuiense teve conhecimento do ocorrido com João Ferry. Entenderam que os trovões, raios e relâmpagos representavam, simbolicamente, o momento em que São Sebastião intercedia pelo rapaz.
Após ser abandonado pelos seus carnífices, João Ferry foi socorrido por populares que estava à distância observando o massacre sem nada poder fazer. O rapaz, aos trapos, foi levado para sua residência. Ele morava com uma família, que o tinha como filho. Seus entes queridos ficaram estarrecidos com o estado do adolescente. E, ao ser questionado pelos familiares, disse-se inocente: “Tia, sou inocente”. Algo que o seu colega, prontamente corroborou.
João Ferry faleceu no dia seguinte. Foi salvo de mãos tiranas, mas não suportou os achaques da barbárie. Teve um dos enterros mais concorridos da época. Amigos de Urussuhy e Benedito Leite fizeram questão de prestar as últimas homenagens àquele jovem que teve sua adolescência ceifada pela brutalidade humana.
Anchieta Santana
Historiador