Sempre em noite enluarada, no frio da madrugada, aparece aos caminheiros que se aventuram pela noite adentro nos caminhos ensombrados do povoado Sangue, a Mãe Chorona. Ela se deixa mostrar descabelada, cabisbaixa e chorando sem parar. É um choro rouco e penoso, que traz em seu grito de dor intensa, uma carga de dramaticidade que chega a ser assustadora. As lágrimas que descem dos seus olhos castanhos e graúdos banham o rosto marcado por um terrível sofrimento e se perde na envergadura do próprio corpo. Este parece mais com uma carcaça humana moldada à luz de maus-tratos.
Trata-se de Zuca Velha, uma filha dos primeiros moradores daquelas veredas do povoado Sangue. Pessoas que vieram de lugares incertos e pontos não determinados dentro da povoação. Ela chegou àquela localidade, quando ainda era criança com idade de oito primaveras, após sua família se encontrar perdida nas densas matas da região.
Depois de muito vaguear e sem esperanças de encontrar saídas, de encontrar habitante, a família resolveu acampar, pela décima vez, à beira de um riacho. Ali, mesmo sem alimentação garantida, puderam vencer o cansaço para, depois, seguirem desnorteados mata adentro. Na manhã seguinte rumaram em busca do que procuravam. Mais um dia se passou e nada de encontrar. Mais uma vez deitaram sob árvores frondosas e ali adormeceram sob ameaça vinda da mata. Um dia, decidiram passar mais tempo em um determinado lugar. Procuram um córrego e tomaram parte de suas margens como moradia.
E ali, foram ficando, ficando…anos a fio. Passaram a usar frutas e carne de pequenas caças como fonte de alimentação. Tiveram que se adaptar a muitas coisas. O enorme frio, a alimentação sem sal, e as vestes eram quase trapos remendados à base de nós e seda extraída de tucum. E todos os dias enfrentavam as adversidades que a natureza impõe a quem a invade.
Além dos pais, fazia parte da família, um tio da garota, apelidado de Mané Buriti, que já contava com mais de trinta anos de idade. Mas, pela aparência física, parecia ter cinquenta. Ele tinha cabelos sempre por cortar, barba grande e descuidada e apresentava sintomas de uma obesidade mórbida. Sempre dormia embaixo de um frondoso pequizeiro que ficava ao lado do barraco coberto com folhas e capins. Ele terminava sendo, por ventura, a primeira isca das feras naturais e uma espécie de vigilante do restante da família.
Aconteceu que, Mané Buriti terminou por ter relacionamentos sexuais com a sobrinha. Ela já tinha treze primaveras e semblante que se mostrava bem mais idoso e surrado pelo sofrimento. Os pais defendiam a tese de que era necessário “render a família” para aumentar as chances de sobrevivência. Até então, era pouca gente para viver num isolamento muito grande. Na região não existia outras família a menos de cinquenta léguas. Era o que imaginava a família. Tudo que precisavam era retirado da própria natureza. Nenhum membro daquela linhagem conhecia a cidade, uma bodega ou algo semelhante. As vestes e camas eram confeccionadas com peles de animais, folhas e cipós. Alguns objetos eram feitos a partir de madeira, ossos e chifres de animais; e outros, como bacia e assemelhados eram subtraídos de indígenas que habitavam aquela região.
Certo dia, numa manhã ensolarada, quando os pais de Zuca Velha enfrentavam mais uma caçada nas redondezas do barraco onde moravam, foram surpreendidos por onças que rondavam famintas. Não tiveram tempo para reação. Chico Noivo, o pai e Maria Madalena, a mãe, foram triturados pelas garras ferinas e levados para lugar incerto.
Zuca Velha e Mané Buriti ficaram desesperados com a morte dos familiares. Apenas um chapéu de couro de veado, usado por Chico Noivo, e um par de alpercatas de Maria Madalena foram encontrados no local. Entraram em pânico e começaram a pensar que seus dias estavam contados. Seriam os próximos a servirem de alimentos para as feras. Os dias e as noites foram transformados em eternos momentos de tédio e medo. Mais medo do que tédio, mais tédio do que vida. E nessa lida, faziam orações improvisadas para o alívio espiritual.
Mas o tempo foi passando… passando! Certo dia, Zuca Velha percebeu que sua barriga estava crescendo e seus seios aumentando de volume e um pouco doloridos. Mesmo naquele estado de angústia, passou a meditar sobre o que sua saudosa mãe falava como era que o homem vinha ao mundo. Foi aí que o medo aumentou, ainda mais, naquela mente ainda pueril e surrada pela crueldade do destino.
Mas não teve nenhuma complicação para o nascimento da criança. O filho, sob os cuidados e Mané Buriti, veio ao mundo. Por um instante, esqueceram o tédio e o medo e, juntos, num abraço comovente, choram de alegria. Na vida, aquele foi o primeiro e singular momento de extrema felicidade. O primeiro ao longo de muitos anos. Os pais mais soluçavam do que choravam. Já o bebê, mesmo nos braços cabeludos do tio-pai, chorava à exaustão. Foi nesse instante que um tigre, que passava nas proximidades, foi atraído pelo grito e a fragrância do inocente. A fera aproximou-se com sua astúcia caçadora e se lançou sobre o pai e a criança, produzindo uma cena triste e lamentável. A criança que acabara de chegar ao mundo, já estava de volta. Acabara de nascer e já experimentava o outro lado da moeda da vida. O recém-nascido apenas deu um beijo no fôlego vital.
Zuca Velha, deitada a um canto sujo da pequena moradia, assistia a tudo e nada podia fazer. Entrou em estado de choque. Quando voltou a si, estava ensanguentada e solitária. Uma hemorragia impiedosa a consumia. Cobrou forças, chorou, gritou e bradou em vão…em vão! E mais, ciente da proximidade do fim, entrou num desvairo intenso demais. Era uma loucura indomável. Saiu a caminhar sem destino e desapareceu numa mata fria e fechada, deixando um rastro de sangue vivo.
Após algumas décadas desse acontecido, Zuca Velha passou a aparecer para caminhantes daquela região. Sempre se mostra chorando em demasia e caminhando em direção às pessoas. Para que ela fique invisível, bastava dizer que o filho dela está vivo. Ouvindo essa informação, ela passa os longos cabelos sobre a face molhada de lágrimas e, num passe de magia, desaparece.
E assim, Zuca Velha sempre volta procurando um caminheiro para saber notícias sobre o filho. Basta que o viajante passe naqueles caminhos após a meia-noite.
Anchieta Santana
Historiador uruçuiense