Quase todos os dias, um garoto franzino, quase sempre pés descalços, aspecto tristonho e ligeiramente cabisbaixo, passava em minha rua de chão batido; ele, que parecia metido numa busca interminável e indefinida, trazia consigo um desalento no olhar capaz de sensibilizar qualquer pranto humano. Em raras vezes ele aparecia acompanhado de uma garotinha que aparentava ser sua irmã. Ela, igualmente desprovida de calçados e uma face sem os cuidados necessários. Perambulavam por algum tempo e depois retornavam pelo mesmo acesso.
Certo dia, numa manhã ensolarada de primavera, quando o garoto passava sozinho, não me contive e busquei um tímido diálogo:
__Qual é o teu nome?
__Janu da Silva! Respondeu-me paulatinamente.
__Quantos anos você tem?
__Oito. Tenho oito anos. Disse fitando uns restos de brinquedos no passeio da rua.
A julgar pelo tamanho e aparência física, Janu tinha apenas cinco anos. Nada mais. Trazia olhos pálidos, mas com rastros de lucidez infantil. Os braços raquíticos, fisionomia macilenta, unhas por cortar, cabelos crescidos, empoeirados e uma pele surrada pelo desalento dos dias; e ainda, apresentava uma voz com ares sôfregos de rouquidão e cansaço. O traje se resumia num calção desgastado pelo uso diário e uma blusa onde se podia ler notas políticas que discorriam sobre cidadania.
Por alguns minutos, fitamo-nos de forma serena. Não demorou muito, ele desviou seu olhar para um ninho de beija-flor, engenhosamente construído no teto de uma barraca onde alguns homens jogavam sinuca. Atento aos gestos do garoto, sentei num canto da calçada e retomei a leitura de “Os Miseráveis”. Num determinado momento, ele, vendo um freezer que se mostrava num comércio em frente e fazia merchandising de sorvetes e picolés, chegou bem perto de mim e pediu:
__Ei, moço, quero um picolé.
__Você parece gripado. Observei.
__Não. Não tenho gripe nenhuma, seu moço. Quero um picolé. Só um.
É claro que ele estava gripado. A sujeira estampada no nariz, prontamente desmentia o garoto. Mais uma vez olhei sua face imaculada e percebi que não era apenas o desejo de uma criança em saborear um picolé; era, de fato, rastro de fome. Se não fosse sua timidez infantil, pediria um prato com arroz, feijão e carne. Mas, foi bastante humilde; queria apenas um picolé. Como se um pequeno bloco de gelo recheado com alguns ingredientes fosse capaz de dar alento àquele corpo frágil e já caminhando para debilitação. Olhei sua face, mais uma vez, percebi naquele pranto pueril, a total ausência de proteção social. Fui à geladeira que ficava na primeira sala, enquanto sua fisionomia vibrava com minha ação. Para sua surpresa, apanhei um copo de suco e um pedaço de bolo. Ele não se contentou e começou a sorrir silenciosamente; sorrindo de boca cheia. Naquele momento, a tristeza fugiu do seu pranto e deu lugar a uma contagiante expressão ingênua.
Depois de degustar o que, para ele era um verdadeiro manjar, retornamos os questionamentos:
__Você é filho do Zuca da Maria Laura?
___Não.
__Como não?
__Ele mora com mamãe!
__Mora com tua mãe e não é teu pai?
__Ele não é meu pai. Papai mora noutra cidade. O nome dele é José da Malária. Faz tempo que ele não vem ver a gente. E acho que não vem mais.
__O Zuca da Maria Laura é quem cuida de você e dos teus irmãos, então ele é também teu pai.
__Ele vive bêbado e surra a gente toda hora! Ele não gosta de nós. Ela bate na mamãe quase todos os dias e a gente não pode fazer nada. O corpo da minha irmã mais nova está cheio de beliscões feitos por ele.
__Por que ele faz isso?
__Não sei. Acho que ele não gosta da gente. Mamãe está lá em casa chorando. Ele bateu nela com um fio e saiu sangue do nariz. Quando eu crescer ela vai pagar tudo que está fazendo com a gente. Ah, se vai!
Fique estacado-pasmado ver tanto ódio recluso naquela mente infantil. Naquela fisionomia estavam condensadas as marcas de uma violência recolhida. E isto parecia ser um fardo extremamente pesado para aqueles ombros de pouca idade.
Depois de um demorado silêncio, o garoto fingiu esquecer aquela situação gritante e, mais uma vez limpando o nariz, saiu brincando de jogar uma pedra contra a outra como se fossem bolinhas de gude.
Anchieta Santana